Nova York, 10 de junho de 1946,
Clarice, esta é a quarta carta que inicio para responder a sua. Ainda ontem, me lembrei muito de você, porque um americano me perguntou se meu relógio era suíço. A Suíça existe mesmo?
Daqui de Nova York, não posso te contar nada além do que você calcula. Tenho sentido muita falta do seu livro que deixei no Brasil, para plagiar uns pedaços quando vou escrever o meu. Tenho tido muitas dores de cabeça. Tenho tido muitos pesadelos. Tenho tido muito pouco dinheiro. Tenho tido muitas oportunidades de ficar calado. Tenho tido muitas decepções com os correios. Tenho tido cansaço, saudade, calma. Tenho bebido muito, muito, muito. Tenho tido vontade de voltar. Tenho xingado muito Getúlio. Tenho tido muito medo de morrer. Eu tenho tido muita pena da Helena por ter se casado comigo. Tenho tido muita vontade de voltar a brincar.
Clarice, eu tô perdido no meio de tantos particípios passados, eu tô com vontade de fumar e meu cigarro acabou. Eu tô com vontade de namorar de tarde em uma pracinha cheia de árvores.
Só de pensar que você está lendo essa carta com muitos dias depois de eu ter escrito, me dá vontade de nem mandar, mas eu mando. Me escreva, te responderei imediatamente.
Como vai o seu livro? O que você faz às três da tarde?
Eu quero saber tudo, tudo.
Me escreva uma carta de sete páginas, Clarice.
Nada de muito novo aconteceu por aqui. Assisti laranja mecânica, fiz compras, não conversei muito com os meus pais. Nada que eu considere interessante o suficiente para registrar. Então, quando tirei as fotos, foram de coisas entediantes. É estranho pensar que ficamos parados, escutando, enquanto alguém fala? Fingimos prestar atenção, mas na verdade estamos pensando sobre nossas próprias vozes. A gente não deveria participar das aulas? Eu não deveria?
Não havia jamais pensado sobre isso, mas durante a aula, olhei pela janela e vi gente rindo, se movimentando.
Confesso, tive ciúmes.
A parte entediante não é eles, óbvio. É simplesmente como eu me sentia. Que sentimentos bobos temos de vez em nunca.
Novamente em busca de fotos, a espera do trem, eu registrei.
Entediante, entediante, entediante...
A minha casa, fim de tarde, meu cachorro latindo, carros passando, minha irmã dormindo, ela anda tão cansada. A suculenta que a minha mãe cultiva está tão viva.
Novamente, entediante.
Se Fernando Sabino me perguntasse o que faço ás três da tarde, eu não saberia responder. Provavelmente diria que ás três da tarde eu estou pensando, com muito sono, sobre o dia seguinte. Meu livro, parado, não tenho tido tempo, nem imaginação. Mas escreveria sete páginas, trinta, apenas contando sobre o meu dia, pensamentos, coisas que gosto, vejo, sinto.
O trecho acima é do livro Cartas Perto do Coração, de Clarice Lispector e Fernando Sabino. São cartas, confidencias.
Eu ainda não li.
Me interessei, após ver uma pessoa recitando esse trecho belíssimo. Me apaixonei, tive tanta vontade de ler que tive que postar aqui.
Talvez eu me sinta como Fernando Sabino, mas não ando bebendo, nem fumando ou tido dores de cabeça. Não tenho tido pesadelos, medo de morrer ou pena de Helena. Getúlio já morreu.
Enfim, minha vida não é entediante, apenas tem momentos mais lentos, igual a velocidade do trem que eu esperei.
Até semana que vem, talvez ela seja mais movimentada.
CLARA R. ❤
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