Eu sei, mas não devia.
Crônica de Marina Colassanti
"Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos e a não ter outra vista que não as janelas ao redor. E, porque não tem outra vista, logo se acostuma a não olhar pra fora. E, porque não olha pra fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas. E, porque não abre as cortinas, logo se acostuma a acender mais cedo a luz. E, a medida que se acostuma, esquece o Sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque já está na hora. A tomar café correndo porque está atrasado. A ler o jornal no ônibus porque não pode perder tempo da viagem. A comer sanduíche porque não dá pra almoçar. A sair do trabalho porque já é noite. A cochilar no ônibus porque está cansado.
A gente se acostuma a procurar mais trabalho pra ganhar mais dinheiro, pra ter com o que pagar nas filas em que se cobra. A gente se acostuma á poluição, ás salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro. Ás bactérias da água potável, á contaminação da água do mar, á lenta morte dos rios. Se acostuma a não ouvir passarinho, não ter galo de madrugada, não colher fruta do pé, a não ter sequer uma planta.
A gente se acostuma com coisas demais, pra não sofrer, em doses pequenas tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, o ressentimento ali, uma revolta acolá. Agente se acostuma pra poupar a vida, que aos poucos se gasta, e que, gasta de tanto se acostumar, se perde em si mesma"
(trecho publicado no Jornal do Brasil em 1972. Disponível em "Melhores crônicas Marina Colassanti"
Essa semana dispenso textos. Estou acostumada a me acostumar. Todos estamos.
CLARA R. ❤
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